Memórias de Jaguariúna

Capítulo 8 - Tanquinho e o velho tanque

por Gislaine Mathias/Estrela da Mogiana em 13/08/2023Cantoneiro Raimundo de Souza junto com o filho Beraldo, que assumiu a função de pinante, quando era criança. Foto foi tirada na década de 1950  (Acervo Casa da Memória Padre Gomes)Tanquinho Velho é um bairro antigo de Jaguariúna cercado de muitas histórias. Um lugar que teve a presença de indígenas do povo caiapós e anos mais tarde se tornou passagem dos bandeirantes rumo ao Caminho dos Goiases, em busca do ouro. O lugar também foi importante no auge do café e até ganhou o nome de Tanquinho por causa de um tanque, que era ponto de parada de tropeiros e boiadeiros. 

O morador, escritor e pesquisador Beraldo de Souza escreveu dois livros sobre o Tanquinho Velho e sempre se mostrou um apaixonado pelos causos contados pelos antigos moradores. Beraldo ainda vem acompanhando as transformações do bairro desde quando era criança, pois a sua família está entre as mais antigas do Tanquinho Velho. Quando começou trabalhar exerceu a função de pinante enquanto que o pai Raimundo trabalhou de cantoneiro, ou seja, estiveram à frente de duas antigas profissões. Beraldo ainda se dedicou ao comércio e foi vereador por oito anos. 


 
  Meu pai era descendente de português. Meu avô Pedro Lúcio de Souza veio para o Brasil trabalhar na lavoura de café e foi residir em Amparo. Meu pai é amparense, nasceu lá em 1910. Casou com a minha mãe [Maria Moraes de Souza], que também era da região, e assim foram progredindo e construindo a família. Depois, eles vieram para a região do Jaguary.  Meu pai ingressou no Estado, no Departamento de Estradas de Rodagem (DER), trabalhando como cantoneiro, nas rodovias. Naquele tempo, era estrada de terra, não existia asfalto na região. A Estradinha Boiadeira ligava Campinas a Mogi Mirim e meu pai trabalhava ali como cantoneiro.  Cantoneiro é uma atividade que o estado adotou para uma pessoa, com grande responsabilidade de cuidar do trecho da estrada. Passava muita boiada e danificava as banquetas, (terra puxada paralela à sarjeta, por exemplo, tinha o barranco, a sarjeta e depois tinha a banqueta onde costumava plantar erva cidreira), sarjetas e aquela sangra que o cantoneiro abria para dar escoamento nas águas, então, tinha que ter conservação. [Era] aquele poeirão e quando passava a boiada, então, era muito boi bravo e precisava pular a cerca e esperar a boiada passar. Era 2 km a obrigação de cada cantoneiro. Meu pai pegava do km tal, caminhava 2 km, dali pra frente era outro cantoneiro, e assim sucessivamente. Cada um cuidava do seu trecho de 2 km. Tinha uma bandeirinha de ferro, era amarelinha, então, meu pai fincava a bandeirinha no barranco porque o chefe passava sempre de charrete ou de calhambeque, via a bandeirinha e constatava que o cantoneiro estava trabalhando naquele trecho. Se o chefe passava e não estava ali podia até cortar o dia. A bandeira era ponto chave dos cantoneiros. Tinha que usar ela onde estava trabalhando. Quando o meu pai veio de Amparo pra cá, ele foi morar no sítio São Jorge, chamava Chacrinha e ali nós nascemos. Em 1940, meu pai comprou uma gleba de terra (que pertence à família até hoje). E aquele tempo media as terras, não era com topografia, era com corrente. Eles esticavam a corrente assim e ia medindo, deu tanta braça (era uma antiga medida de comprimento). Naquele tempo não falava nem metro falava deu tanta braça. Meu pai comprou uma gleba de 6 mil metros de terra. Ali meu pai fez uma casinha até meio acanhadinha e a família foi crescendo. Quando mudou pra cá eu tinha seis meses. Ali eu me casei, construí uma casa ali perto e estou morando até hoje.

 

Estudo e trabalho
 
   Beraldo, que teve como primeiro emprego o cargo de pinante, guarda em suas memórias o tempo de criança que estudava na Escola Mista do Tanquinho, as brincadeiras e o trabalho no Departamento de Estradas e Rodagem (DER).


 
   Estudei pouco até o terceiro ano e depois mais tarde fui estudar em Campinas. Com nove anos eu entrei na escola. Estudava na escola mista do bairro Tanquinho Velho. Era um estudo forçado até a terceira série. A gente aprendeu mesmo, matemática pra mim não tem problema. Na hora do recreio a gente saía. Lembro também os lanches que a gente levava. Minha mãe sempre fazia bolinho de farinha de mandioca. Era tão gostoso o bolinho encharcado que você comia engordurava o papel. A gente colocava naquele tempo era embornal do lado assim, aquela sacolinha de pano, caderno dentro, lápis, borracha, e depois colocava o lanche junto, as vezes, a gordura vazava tanto que engordurava os cadernos. Na hora do recreio sentava tudo num pranchão que tinha assim embaixo do caramanchão, no pé de primavera. Depois ia brincar de jogar pião, jogar bola e as meninas ficavam do outro lado. O meu primeiro emprego foi de pinante. Foram construir uma fábrica de sebo, aqui, e até durou muitos anos aqui no bairro, e tinha que fazer uma terraplanagem e ai arrumaram uma carrocinha, com um burro. O burro chamava Pinhão. Aí encostava lá em cima, os homens carregavam a carrocinha e eu puxava o burro, chegava no aterro onde tinha que despejar a terra, dava marcha ré, destravava a caçambinha, empinava a carrocinha caia a terra e o burro saia. Dava 50, 80, 100 viagens por dia. Era tudo pertinho. Com 13 anos fui trabalhar no meu primeiro emprego de pinante. Eu trabalhava de apanhar algodão e apanhar café por aí. Trabalhava nas fazendas e sítios. Entrei no Haras Patente, naquele tempo era Fazenda Feital, assim na roça e depois fui trabalhar de ajudante de tratorista. Depois fui trabalhar em vários lugares, na Nossa Senhora das Graças e na fazenda Santa Úrsula, do Celso Camargo Moraes, como tratorista. O DER precisou de funcionário e me chamaram. Entrei praticamente na turma, trabalhando de ajudante. Depois me chamaram para o setor de sinalização. Fui fazer pintura de faixa nas rodovias e confeccionar placa de rodovia. Prestei concurso para motorista, passei e me deram um caminhão pra trabalhar. Ai surgiu uma vaga de encarregado de turma e eu tinha uma turma de 12 funcionários. E aí fiquei no escritório e meu chefe aposentou e ele falou você vai ficar no meu lugar. 1996 eu aposentei como fiscal de segurança de tráfego, com 55 anos de idade e 36 anos de serviço.

 
Tanquinho e tanque
 
Beraldo sempre gostou de realizar pesquisas sobre o surgimento do bairro e dessa paixão nasceu o livro Tanquinho Velho: No Caminho da História de Jaguariúna, no ano de 2012. Ele ainda escreveu o livro Comunidade de Santa Cruz do Tanquinho Velho – Jubileu de Ouro da Nova Capela, em 2017. O nome Tanquinho surgiu por causa de um tanque existente no local. Com a inauguração da estação do Tanquinho, que pertence a cidade de Campinas, foi acrescentado ao nome do bairro a palavra Velho para não confundir com o outro.

 
 
  A história conta o seguinte: Tanquinho é antiga terra dos caiapós. Nos meados do século XVI e começo do século XVII ali habitava os índios (indígenas). Eles se alimentavam de palmito e de tudo que a natureza oferecia para a sobrevivência. Depois foi indo, alguns começaram aprender a prática da agricultura, outra tribo pequena pecuária, e assim foram tocando. Eles armavam as suas tendas às margens dos rios Jaguari e Atibaia, porque o Tanquinho fica no meio dos dois rios. No início do século XVII consta que começou a invasão dos imigrantes europeus. Começou vim pra cá, italianos, espanhóis e portugueses, e houve muito confronto com os habitantes da região, os índios caiapós. Travaram batalhas e morreram muitos caiapós. Depois, já no final do século XVII, Portugal queria pedras preciosas, queria ouro e chegou a notícia que na região de Goiases, tinha muitas jazidas de pedras preciosas, então, eles começaram mandar portugueses pra cá em busca do ouro. Eles tinham aqueles barquinhos a vapor, que levavam três, quatro meses pra vir de Portugal até o seu destino. E muitos portugueses morriam no meio da viagem porque era muito calor e tinham que jogar no mar. Quando chegava lá em Santos, São Vicente, litoral de São Paulo, eles desembarcavam, marchavam a pé na estrada e formavam a comitiva. E eles passavam em São Paulo, lembro também que eu estudei tinha mais ou menos 10 mil habitantes e descia para a região, passava em Campinas, já existia a cidade de Campinas, com 2 mil habitantes. Eles pegavam a estradinha que ligava aqui o Sul de Minas, estradinha que passa dentro do Tanquinho, bem no centro do Tanquinho. Passava por Mogi Mirim, Mogi Guaçu e aí adentravam pra Minas Gerais até chegar em Goiás. Muitos morriam com febre amarela, tifo e icterícia aquele tempo. Ao passarem aqui no Tanquinho, que era a única estradinha e está lá até hoje, Estradinha Boiadeira, eles formavam um ponto de abastecimento e de descanso, aonde eles abasteciam as mulas, os cavalos e descansavam para recompor as energias. Era difícil. Eles tinham que atravessar o rio a nado ou na balsa. Eles atravessavam pelo Porto Velho, que se chama Porto Velho até hoje, ali onde é a fazenda Nossa Senhora de Lourdes. Os bandeirantes levaram muito dos caiapós para trabalhar no serviço duro e pesado. Quando foi chegando no final do século XVII, as jazidas foram diminuindo e os bandeirantes foram desistindo.
  Aí foi nessa época, uma planta trazida pelos portugueses que veio da Etiópia e seria mais tarde o futuro do Brasil. Essa planta chama-se café. Começou chegar o século XVIII e o café foi expandindo. A região nossa de Jaguary era café. Antes dos tropeiros, vem a parte dos barões, dos fazendeiros, das grandes fazendas, os terreiros de café, começaram fazer as casas sequenciais que se chamam colônia e a chegada dos imigrantes italianos e portugueses. Aí surgiu, então, como transportar o café e começou aquele formigueiro de mulas, cavalos, carroça e carro de boi, transportando o café. Saía do sul de Minas [Gerais] e chegando lá no meu bairro, não era Tanquinho ainda, ali tinha um tanque, era um tanque raso, o fundo era batido, uma areia bonita, então, tinha que atravessar por dentro daquele tanque. 
Se vinha carroção, carroça, carro de boi, os boiadeiros atravessavam por dentro do tanque. Ali era um lugar propício porque era um gramado bonito e amplo. Eles armavam as tendas, descarregavam, soltavam os cavalos e as mulas para descansar. Aí no outro dia colocava tudo no lombo do burro e nos cavalos, outra vez, e seguia para Campinas. Até então, o trem já vinha até Campinas. Eles embarcavam o café no trem e carregava o sal para levar de volta. Então, a comitiva quando saia lá do Sul de Minas, eles já falavam vamos parar no Tanquinho, porque tinha o tanque, então, foi aí onde nasceu o nome Tanquinho Velho.
 
 
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