Memórias de Jaguariúna

Capítulo 3 - O trabalho artesanal na ferraria e a profissão de mecânico

por Gislaine Mathias/Estrela da Mogiana em 01/08/2023Família Mantovani no trabalho na ferraria: Roberto, Odone (pai do Moacyr), José, Irineu e o avô Humberto (Acervo Casa da Memória Padre Gomes)A Igreja Centenária de Santa Maria, de 1894, é o marco de fundação de Jaguariúna. Ao longo desse tempo, milhares de jaguariunenses foram batizados, casaram, assistiram missas e vivenciaram festas e procissões. No alto da torre da igreja está o antigo relógio que precisa de corda com frequência para continuar funcionando.

Toda semana, Moacyr José Mantovani, com 89 anos de idade, segue a rotina de subir os 80 degraus de escada que levam até a torre da igreja para cuidar do relógio. Além disso, ele realizou um trabalho minucioso de restauro, sendo que precisou ser desmontado para conseguir descer com as peças. Ele é católico desde criança, já foi coroinha, vem acompanhando ao longo do tempo as diversas atividades católicas realizadas em Jaguariúna e possui uma forte ligação com a Igreja Centenária de Santa Maria. 
 


    Eu cuido do relógio da igreja e fui eu que restaurou o relógio. Eu cuido dele faz no mínimo sessenta anos. Desde quando era coroinha eu já dava corda no relógio. Faço lubrificação, dou corda uma vez por semana e é uma tradição da cidade esse relógio. É um patrimônio histórico da cidade. Eu sou mecânico de automóvel, mecânico de trator, mecânico em geral, mas como o relógio é mecânico, não é elétrico, então, é como se fosse uma caixa de engrenagem, é lógico, eu conheço carro, motor, mas isso foi um desafio pra mim. Pra falar a verdade de tanto que eu cuidava dele que eu fiquei apegado ao relógio. Ele começou parar, ele começou atrasar, adiantar, ele tinha um desgaste natural porque é um relógio de muitos anos. Como ele pesa cem quilos montado e lá em cima onde ele está tem um alçapão pequeno que a gente passa meio apertado. Tem a escada que é em espiral, de madeira, então, desmontei o relógio lá em cima. As duas bases dele onde prende os carreteis, as engrenagens, que são quinze eixos, tudo, engrenagem, um monte de coisa complexa. Essas duas bases de ferro maciço eu trouxe uma por vez no meu ombro descendo a escada, passando pelo alçapão. Eu fiz umas quarenta subidas e descidas, no mínimo, com as peças até trazer tudo pra oficina. Aí como eu tenho o serviço de torno. Fiz todos os embuchamentos, troquei todas as coisas gastas eu acho que fiquei uns três meses com ele aqui. Aí quando terminei eu montei ele aqui na oficina e fiz funcionar. Essa história me deixou feliz de tanto tempo cuidando do relógio e ainda consegui restaurar ele. Depois eu fiquei umas duas, três semanas pra ajustar porque desmontei muita coisa pra colocar as coisas tudo no seu lugar. Aí fui montando lá em cima que não tem muitas condições lá, mas quando a gente tem vontade a gente consegue. Uma vez por semana eu subo lá pra dar corda. É nove dias que dura a corda, mas eu vou no sábado ou no domingo, que é para não acabar a corda. Na mecânica é também assim persistência, paciência e cuidado pra não mexer demais e não perder o fio da meada.
 

Ferraria e benzedeira
 
  Uma profissão transmitida de pai para filho. O trabalho na ferraria foi uma tradição da família Mantovani, no tempo que Jaguariúna era distrito de paz de Mogi Mirim. Esse trabalho foi iniciado por Humberto Mantovani, imigrante italiano e transmitido para os filhos. O braço direito de Humberto na ferraria era Odone Santo Mantovani, pai de Moacyr. Já a mãe Regina Rebecchi Mantovani era benzedeira bastante conhecida no distrito.
 
 

    Meu avô veio de Verona, Humberto Mantovani e foi designado para a fazenda Bom Retiro, entre Pedreira e Carlos Gomes, para apanhar café. Depois de um tempo minha avó [Regina Rebecchi Mantovani] veio de Mantova e por coincidência foi designada para a mesma fazenda Bom Retiro. Ai, namorou e depois de um tempo se casaram. Minha avó contava uma história. Eles vieram no porão do navio porque não tinha recurso financeiro. O navio daquele tempo não era como de agora. Tinha uma enorme baleia e o comandante ficou com medo que virasse o navio. E ficava tocando o apito do navio pra que a baleia fosse embora. O meu avô para complementar um pouquinho o que ele ganhava ia trabalhar de fim de semana numa ferraria. Ele ia a pé do Bom Retiro até Pedreira. Foi aonde meu avô aprendeu o ofício de ferreiro, com João Eteli, trabalhando de fim de semana e ganhando um dinheirinho. E aí ele começou a fazer acho que o pezinho de meia dele e mudou pra Jaguariúna. Ele veio trabalhar lá na rua debaixo [Rua Alfredo Engler]. Vinha tropa de animais, trinta, quarenta animais para ferrar. Colocava ferradura, arrumava bico de arado, fazia charrete e aqueles carroções. E no começo quem segurava o pé do cavalo pra ele ferrar era a minha avó.  Era um trabalho de arte porque o ferreiro era um artista. De um pedaço de ferro ele fazia coisas que você nem imaginava. E o segredo de você bater o cravo no casco do animal, se você não tiver prática, você pega a parte mole machucava o animal. Aí você aniquila o cavalo. Infelizmente não existe mais ferreiro. Foi o que ajudou minha família foi essa profissão.  E fazia roda de carroça, fazia o chapeamento, fazia toda ferragem pra uma carroça, pra uma charrete. Você não imagina que artistas que eles eram. Faziam cruz de cemitério com todos os enfeites. Tudo manual. Era sacrificado mas era um serviço de arte. Depois ele comprou esse terreno onde é o prédio Humberto Mantovani hoje [Rua Cândido Bueno] montou a ferraria. Continuou a ferraria nos fundos, bomba de gasolina na rua, borracharia, troca de óleo e serviço mecânico. Nasceram os filhos e eles continuaram a profissão de ferreiro. Continuou a ferraria, bomba de gasolina na rua, aquela bomba antiga, borracharia, troca de óleo e tinha uma valeta que subia os caminhões para fazer serviço mecânico. Ai fomos tocando nossa vidinha. Minha avó Regina era benzedeira. Ela benzia as crianças e as pessoas gostavam muito do trabalho que ela fazia. E minha avó era tão conhecida do pessoal do sítio que a gente ia muito em Guedes. Andava toda essa região a pé, saía cedo, só voltava de noite. Era a minha segunda mãe. A gente ia de sítio em sítio. Um dava uma galinha, outro dava alface e o que eu mais gostava de comer era pão feito em casa, nesses fornos de barro. Meu pai [Odone] gostava de baile, principalmente valsa vienense, e rodava o salão. Jogava bocha. A única coisa era só trabalhar. Trabalho, trabalho e trabalho. Ele era o braço direito do meu avô. No trabalho, ele tinha essas fazendas que quando eram muitos animais e era difícil pra trazer por estrada, então, preparava tantas ferraduras, todas as medidas e entregava todo o material. Ia na fazenda de manhã e ficava até de noite. Ferrava aí trinta, quarenta, cinquenta, sessenta, o que fosse possível. Tinha fazenda que pagava até com mantimento.
 
Religião
 
  Moacyr acompanhou de perto o trabalho do Padre Antonio Joaquim Gomes, na comunidade católica de Jaguariúna e tem muitas histórias, principalmente, quando precisava leva-lo para dar extrema-unção e as vezes, enfrentavam chuva no meio do caminho. Atualmente, a igreja usa o termo unção dos enfermos.

 
 
  Por influência do padre Gomes, ele me mostrou a força da Eucaristia e eu aprendi o quanto que é rico você estar perto de Deus. Isso tem me ajudado muito. E o meu avô, ele não frequentava igreja, acreditava em Deus, tinha terço, na cabeceira, tinha um crucifixo bonito, aquele antigo. E eu consegui levar ele pra missa, conseguia fazer ele comungar tanto eu fiz isso com o meu avô como com meu pai. Eu tive a felicidade de descobrir essa força através do Padre Gomes. Sem a força de Deus, a gente não é nada. Quando o padre Gomes veio aqui eu dormia num dos quartos pra fazer companhia, na Casa Paroquial e já participava da missa das sete da manhã. E a noite tinha muito chamado pra extrema-unção, a pessoa estava pra morrer. Eu sempre tive motocicleta antiga, ele ia na rabeira da minha moto para dar extrema-unção. Tinha noite que a gente passava a noite nas estradas, mas chegava, o Padre Gomes todo feliz porque tinha conseguido ministrar a extrema-unção antes que a pessoa morresse. Com o padre Gomes tem uma passagem, uma noite de chuva, nós recebemos um telefonema pra ir no Tanquinho Velho. Aí peguei minha moto, padre Gomes montou e era estrada de terra naquele tempo. Aí quando chegou no entroncamento, a batina do padre entrou na corrente da moto aí nós dois fomos pro chão. A batina ficou presa e rasguei a batida do padre e chuva em cima. Montamos na moto e fomos embora. Chegou na casa da pessoa tinha uns dez cachorros e pegaram no resto da batina do padre, e puxa a batina. Ele deu a extrema-unção. O doente esperou a extrema-unção para morrer. Aí nós chegamos cinco da manhã de volta, o padre Gomes, nós estávamos molhadinhos, tudo cheio de barro, e ele estava feliz da vida de ter conseguido chegar em tempo.

 
Trabalho e música
 
Apesar de ter ajudado muito na ferraria e na bomba de gasolina, Moacyr gostava mesmo era de mecânica, profissão que seguiu por muito tempo. A  música também vem fazendo parte da sua vida.
 

 
   Eu sempre gostei de música, eu tenho tendência que a minha família é de banda de música. Meu pai era o mais ocupado da família que ele era o esteio do meu avô na ferraria, mas meu tio Roberto tocava bumbo e tuba, meu tio José clarim, meu primo Agenor tocava caixinha na banda e o seu Paulo de Moraes [Penteado] que era o maestro da banda e ele era alfaiate. Nas horas de folga ia na alfaiataria dele e deixava ficar soprando os instrumentos. E aí eu comecei cantar no coro da igreja e apareceu a oportunidade de fazer um conjunto pra fazer casamento na igreja, depois fazia apresentação em vários lugares e tocava em bodas e aniversários. E até hoje ainda canto em casamento e canto no coral da igreja, Santa Maria. Tudo isso faz parte da minha vida eu concilio o meu trabalho no estacionamento com a mecânica, nas horas de folga. Ainda continuo cantando, trabalhando e andando de moto. Diz que quando eu nasci o médico falou assim arruma um pouquinho de gasolina para limpar a graxa desse mecânico, eu nasci engraxado. Eu nasci pra ser mecânico. Eu sou uma pessoa que eu não desisto de nada fácil. Quanto mais difícil, mais desafio. E aí eu tenho o meu jeitinho com calma e procurando por eliminação. Defeito em carro, por exemplo, na minha oficina, durante o dia, minha oficina era lotada, e alguns defeitos eu precisava ter um pouquinho de tempo e sossego. O que eu fazia? Atendia o freguês até nove, oito, sete da noite até tarde aí eu ficava a noite inteira na oficina fechada aí eu tinha condição de raciocinar e descobrir os defeitos. Eu sempre fui persistente e paciente. A gente batalhava dia e noite, era mecânica, bomba [de gasolina] de rua na calçada, era ferraria, era borracharia, era engraxador de carro, troca de óleo, e assim foi a nossa vida.
 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Compartilhe:
Comente:
Patrocínio Memórias de Jaguariúna