Estrela da Mogiana

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Capítulo 15 - Os desafios de um imigrante português na ferrovia em Jaguary

por Gislaine Mathias/Estrela da Mogiana em 20/08/2023 Imigrante português Antonio carregando a neta Gislaine com o filho Moacir em frente à casa comprada no ano de 1940 (Acervo da família Mathias)No ano de 1920, o imigrante português, Antonio de Oliveira Mathias (avô da autora Gislaine Mathias) embarcou numa viagem para o Brasil, em busca de novas oportunidades. Ele veio na embarcação Sarravantana, mas a viagem foi bastante tumultuada, pois o navio enfrentou problemas e quase naufragou devido a um forte temporal. De acordo com documento datado em 25 de outubro de 1920, do Serviço da República Portuguesa, Antonio d’ Oliveira Mathias (como está escrito no documento), nascido em 24 de novembro de 1898, em Abadia, é cidadão português e embarca com destino a Santos, no Brasil. 

O desembarque ocorreu em 13 de dezembro de 1920. Ele veio junto com dois irmãos, mas ambos acabaram perdendo contato com o tempo. Na época era uma tradição, em sua maioria, o imigrante português ir trabalhar na ferrovia na Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, e com Antonio não foi diferente. Ele começou no setor de melhoramentos, que era responsável por construir uma linha nova quando a antiga não atendia mais as necessidades, então, era feito um novo traçado para oferecer mais segurança.

Também passou pelos serviços de guarda-chaves, turma de conserva e guarda-ponte. Ele sofreu um acidente com o trole, em Desembargador Furtado e só após um tratamento em São Paulo com o médico Godoy Moreira, é que conseguiu andar novamente e mesmo assim, andava com dificuldades. Depois de muito trabalho conseguiu comprar uma casa no distrito de Jaguariúna, de frente com a linha nova que passava pela Estação de Jaguariúna, atual Centro Cultural Ulysses da Rocha Cavalcanti – Zi (estação inaugurada no ano de 1945). Trabalhou por mais de 31 anos e se aposentou em 1º de março de 1954. E seguindo a tradição da família, os filhos Moacir e José seguiram trabalhando na ferrovia.  

 
 
  Naquele tempo [na ferrovia], tudo era feito com carrocinha e burro, picareta, todas essas coisas, não tinha maquinário nenhum, não tinha caminhão, não tinha nada, tudo braçal. Meu pai mudou pra cá [Jaguary], depois de 1925, e começou a trabalhar na turma de conserva, que fazia manutenção da linha, trocava dormentes, trocava trilho, carpia beirando a linha e fazia acero na cerca. Tudo na mão. Ai ele morava na casa da turma, próxima a Fazenda Santa Úrsula. Quando trabalhava na turma de conserva, em 1927/28, por aí, sofreu um acidente que ficou meio defeituoso. O trem pegou o trole carregado de ferramentas. Eles desceram do trole, mas a máquina pegou e jogou o trole com ferramentas e tudo, e bateu não sei se uma ferramenta, algum dormente, bateu nele e quebrou a bacia. Eles vinham vindo embora pra casa. Ficou bastante tempo internado no hospital. Quando voltou trabalhar a Companhia Mogiana queria colocar ele na conservação de linha, mas não podia fazer força. Daí, a Dona Úrsula [Ataliba Nogueira Moraes] viu a situação dele e pediu na companhia que arrumasse um lugar pra ele que não precisasse fazer força. Foi trabalhar de guarda-chaves na pedreira, quando o dono era Gilberto Martins. (No período de 1931 a 1945, Manoel e Gilberto Martins, pai e filho, foram pioneiros nessa atividade, quando se tornaram responsáveis pela exploração e gerenciamento da pedreira, que funcionava no mesmo local da fase atual). Ele era responsável por verificar se havia ponta de agulha quebrada, é uma peça da chave que faz o trem passar de uma linha pra outra e o ‘jacaré’, era um trilho por onde o trem passava e entrava no desvio. Para entrar no desvio precisava passar na ponta de agulha e para sair do desvio tinha que passar de novo no jacaré e na ponta de agulha. Quando quebrava tinha que consertar imediatamente para a linha funcionar normalmente. Na época da Revolução de 32, o único caso que ele falava sempre era de um avião da força do governo que estava rodeando próximo da pedreira, mais pra cá, no sítio do Dioguinho. Tinha um avião vermelhinho rodeando que era da força inimiga dos paulistas, soltou uma bomba no meio de um  cafezal, arrancou bastante pés de café e um homem vinha vindo pela linha, ele entrou num bueiro, um bueiro de uns sessenta centímetros,  ficou entalado e precisaram tirar ele com corda que não podia sair. Ele entrou dentro do bueiro com medo da bomba. E ficou entalado. Quando saímos da pedreira nós viemos pra cá, em 1946, quando fechou a linha velha lá que mudou pra cá. Aí ele trabalhava de guarda-ponte aqui em Jaguariúna (na ponte onde atualmente passa o trem turístico da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária – ABPF) veio morar aqui pra ficar pertinho de casa. Ele ficava com a bandeira verde e dava sinal para o trem passar. Se tivesse qualquer encrenca, um trem descarrilado ele dava bandeira vermelha para o maquinista parar, as vezes trilho quebrado. A bandeira branca era para passar devagar. Ele se aposentou em 1954.  Eu [Moacir] comecei trabalhar na Comercial [empresa Sociedade Comercial e Construtora], em 12 de junho de 1951. Na ferrovia, eu comecei trabalhando aqui na Estação de Jaguariúna já como portador, em 1952. (O portador tinha a responsabilidade de carregar e descarregar as mercadorias nas estações, que incluíam desde mudanças, encomendas, animais, verduras até frutas). Depois na época que o Jânio Quadros era governador do Estado (1955-1959) teve um reboliço lá, mudou diretoria e andou removendo um pra lá e outro pra cá, e me removeram pra Uberlândia. Daí eu fui pra Uberlândia, fiquei quase um ano lá em Uberlândia, depois eu arrumei a remoção para o Armazém Campinas, em Campinas, que daí ficou mais fácil, ficava mais perto de casa. Fiz uma permuta com um funcionário de Uberlândia. Era comum haver a troca de funcionários da mesma função para as localidades mais próximas de suas residências. Depois passei como ajudante de chefe de trem de carga, e as vezes, substituía no trem de passageiro, em Campinas. E depois trabalhei de chefe de trem de carga, cargo que aposentei em 17 de janeiro de 1966. Já o meu irmão José trabalhava nos melhoramentos e depois passou a trabalhar no escritório na estação da Guanabara.

 
Comprando uma casa
 
  Apesar das dificuldades da época, em 1940, Antonio comprou um sítio de Gabriel Sayad, residência onde na Revolução de 1932, havia sido utilizada como trincheira, fato citado no livro Reminiscências de Pedro Abrucês. Na época, a linha do trem passava em frente da casa, a iluminação era precária e não existia asfalto. Além de trabalhar como ferroviário, nas horas vagas, Antonio se dedicava às plantações de algodão, milho, feijão, uva, além de criar vacas, porcos, bezerros e galinhas, quando morava na pedreira. A produção e a criação eram para o sustento próprio e em alguns casos eram direcionadas para a venda.
 Quando adquiriu o sítio, o local contava com uma grande plantação de goiabas e depois foi realizando o plantio de parreiras de uva, pés de jabuticabeiras, mangueiras, laranjeiras.... Os mesmos pés de jabuticaba de quando comprou a propriedade são ainda mantidos há mais de 80 anos no local. De acordo com a escritura, a compra do sítio foi realizada em 25 de novembro de 1940, por cinco contos de réis. A família reside no mesmo lugar até os dias atuais.


 
  Aqui [rua Alfredo Bueno, esquina com Avenida Laércio José Gothardo] era do comerciante que tinha por nome de Gabriel Sayad. O Gilberto Martins [proprietário da Pedeira] emprestou metade da quantia para o pai poder comprar a chácara. Naquela época o terreno tinha pouco valor. Tinha a casa, mas o piso era de terra batida, não tinha luz, a água era de poço, tinha uma mininha que passava lá embaixo na mangueira. Para varrer a casa precisava molhar o chão para não fazer muito pó. Tinha pomar de goiaba e levava com carriola em torno de 50 caixas da fruta para a fábrica de Adone Bonetti (Indústria e Comércio de Polpas de Frutas Jaguari).  Quando nós mudamos pra cá, meu pai pediu para colocar luz elétrica aqui. Tinha energia [no distrito], mas não chegava até aqui. Tinha no centro lá, por volta da igreja, aquela rua principal até lá na estação velha tinha também. E aqui nessa parte aqui não tinha porque aqui era quase tudo brejão, então, precisou pegar energia na rua Cândido Bueno, perto da casa de Francisco Bernardino e do matador velho, que era o local mais próximo. Ele pediu autorização para a empresa [nessa época pertencia ao Sylvio Maia] e a empresa mandou puxar lá do Bernardino que era o lugar mais perto, só que ele teve que pagar o serviço e o material que gastou. Na casa fez o piso, tudo novo, com ladrilho de barro, que nem tijolo. Aquele ladrilho, que usava em terreiro de café, quadrado. Não tinha vidraça, não tinha veneziana, era porta e janela de madeira. Naquela época não tinha casa nenhuma aqui. Tinha umas quatro casas na rua Maria Angela, de lá pra cá não tinha nada. Onde era o posto do Toninho Ferrari (atualmente tem um posto de gasolina com novo proprietário e estabelecimentos de alimentação, na rua Lauro de Carvalho com Avenida Marginal Laércio José Gothardo) era um córrego largo que vinha a molecada nadar. Tinham casas dos funcionários da Mogiana aqui em frente a linha que passava onde tem a avenida [marginal Laércio José Gothardo], tinha a linha do trem que vinha de Campinas, ia pra Mogi Mirim, Ribeirão Preto. A linha nova passava na frente da nossa casa. Tinham cinco casas ali, tinha a casa do chefe, do telegrafista, portador, manobrador e conferente, moravam tudo ali. A energia era do Sylvio Maia, vinha de Pedreira. Ele fornecia força pra cidade de Pedreira inteira e aqui pra Jaguariúna. A força naquela época parecia um cigarro. Um cigarro quando está meio apagando.

 
Descarrilamentos
 
 
O surgimento do trem proporcionou na época um transporte mais rápido de mercadorias e passageiros. A movimentação nas estações era grande. Às vezes aconteciam descarrilamentos de trens e que geravam muitos comentários dos moradores. Dois acidentes ainda são fazem parte das lembrados de Moacir, pois ficaram marcados nas suas memórias.


 
  Às vezes dava algum descarrilamento, tombamento de trem de carga ou de passageiro. O mais grave que deu foi um trem bagageiro que tombou no quilômetro trinta e cinco, ali no trecho entre Jaguary e Guedes. E tombou inteirinho, ficou só a locomotiva, não machucou ninguém. Esse trem levava vários vagões de bagagem e levava um carro misto com professoras. O carro misto é metade primeira, metade segunda. Naquela metade primeira, trazia professoras, vinha professora de Campinas, vinha distribuindo, pra Carlos Gomes, aqui pra Jaguary, Guedes, e vinha tudo nesse trem. Na segunda vinham os demais passageiros. No início da década de 50, um trem que vinha de Amparo para Jaguariúna, descarrilou próximo da Estação Velha, nessa época já estava desativada. O carro de bagagem e o tender da locomotiva (usado como reservatório de água e lenha) atingiram a casa que morava o manobrador, Benedito dos Santos. Eu era portador na estação de Jaguariúna e fui com o chefe Joaquim Pinto de Andrade buscar a caixa de correspondências e valores, que estava no compartimento do chefe de trem, para envia-los em outro trem para Campinas.


 
Picadão
 
  As pessoas de antigamente contavam muitas histórias de assombrações, sendo que muitas continuam sendo transmitidas de geração em geração. Uma dessas histórias se refere ao trem fantasma que passava pelo picadão, uma estrada de terra que era conhecida dessa forma pelos moradores do distrito de Jaguary. 


 
Quem passava pela Ponte Vermelha [de 1875], escolhia seguir na estrada do picadão ou entrar na fazenda Santa Úrsula. Falavam que no picadão tinha um trem noturno fantasma que passava à meia-noite de sexta-feira que muita gente via só a luz. O picadão era uma estradinha de terra que passava do lado da fazenda Santa Úrsula, do Celso [Camargo]Moraes e da Dona Úrsula [Ataliba Nogueira Moraes]. Ela acompanhava a mata da fazenda. Esse trem noturno era famoso naquele tempo. Ninguém passava nessas horas ali, que diz que via o trem. Bem pra cima lá, essa linha que vai pra Campinas que é da Maria Fumaça, bem pra cima assim tem um lugar lá que dá pra ver onde era a linha velha que teve um desastre feio lá numa ocasião lá, que era do lado do picadão. Todo mundo tinha medo. Aí que ficava o picadão, no meio do mato, aí que passava o trem noturno, o assombrado. Das dez horas em diante ninguém andava por ali de medo do trem fantasma.
 
 
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