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Capítulo 14 - A geração Maria Fumaça e o romantismo da ferrovia

por Gislaine Mathias/Estrela da Mogiana em 19/08/2023 Manoel Seixas com a sua mãe Anunciatta, num momento de descontração, em frente à Estação de Guedes, onde trabalhou como chefe (Acervo da família Seixas)Manoel Rodrigues Seixas (in memoriam) fez parte da geração Maria Fumaça, no tempo das velhas locomotivas a vapor e do trem como principal meio de transporte. As estações contavam com grande movimento de trens, passageiros e cargas. Desde criança, Manoel já se mostrava um apaixonado pelos trens e sabia reconhecer qual era a locomotiva através do seu apito. Anos mais tarde, seguiu os passos do pai Joaquim e foi trabalhar como ferroviário na Companhia Mogiana de Estradas de Ferro.

De todos os lugares por onde passou a Estação de Guedes foi a que mais marcou a sua vida, pois realizou desde eventos cívicos até formou um grupo de teatro, mantendo um forte laço de amizade com a comunidade. Quando o assunto era ferrovia, Manoel já tratava de contar as histórias, sempre com um tom poético e romântico, e relatou essa paixão nas páginas dos livros: O Herói Ferroviário, Crônicas de um Ferroviário e O Mundo Fantástico da Geração Maria-Fumaça.

 
 
   A ferrovia foi motivo de grande encanto. Foi de alegria, de tristeza e de pranto e também de grande felicidade. Não sei qual é a cidade, que lá servi, não sei se foi Campinas ou Jaguary, mas eu trago uma grande saudade da ferrovia. Nas tardes da Ave Maria, quanta felicidade me trazia a ferrovia pelo seu romantismo. O trem era tudo. Era o único meio de transporte. O trem era fundamental, por isso, muitas cidades nasceram em função do trem. Eu era telegrafista aqui em Jaguariúna em 1953 e o meu chefe era seu Joaquim Andrade, o pai da Aurélia [Turato]. Em 1954 eu fui transferido pra Guedes, nomeado telegrafista naquela estação. (Chegou trabalhar em Cristiano Osório em 1959). Depois em 1961, eu retornei à Guedes já pra assumir a chefia da estação, onde permaneci mais de treze anos. Treze anos como chefe de estação. Eu realizei muitas coisas lá em Guedes. Tanto é verdade, que naquele tempo Jaguariúna não possuía ambulância e não possuía hospital e o meu carro rodava por esse mundo afora levando pessoas doentes para os hospitais. Tanto que duas pessoas morreram dentro do meu carro. Uma mulher do circo, com problema de coração grave, e ela morreu quando passava o carro lá no Nadir Figueiredo (indústria localizada na rodovia entre Jaguariúna e Pedreira) e guardo uma grande recordação desse fato. Quando o carro ia passando lá na chegada de Pedreira, ela tinha uma filha mãe solteira e tinha uma criança muito bonita. Antes dela morrer ela falou pra filha dela que chamava Vilma, porque que você não manda batizar essa criança aí tem o seu Manoel, chefe de estação, que é uma pessoa cristã, convida para ser o padrinho da criança. E dizendo isso ela morreu. E um dia, a Vilma veio me procurar, seu Manoel você lembra daquelas palavras da minha mãe antes de morrer para você batizar o meu nené? Eu vim convidá-lo. Acertamos com o padre [Antonio Joaquim] Gomes e foi feito o batizado dela. Guedes era um povo maravilhoso, um povo bom e dinâmico. Eu realizei grandes festas em Guedes. Realizei teatro, rodeio e muitas outras coisas. Tanto é verdade que eu fundei um teatro lá em Guedes chamava Teatro Rural de Guedes e o pessoal que trabalhava era tudo da roça. De dia trabalhava e a noite ia lá ensaiar. E quando passava um trem de passageiros a gente se escondia porque era proibido. Passava o trem a gente ensaiava a peça [na estação]. Apresentamos em Guedes, em Jaguariúna, lá numa fazenda em Anhumas e em vários lugares. Guedes era bastante movimentado. A cidade ainda crescia e estava engatinhando, mas o movimento grande era de trens. Corria uma média de doze trens de passageiros e o divertimento do pessoal era ir na estação aos sábados e domingos. Quantos namoros saíram lá em Guedes, cujo, o palco era a estação. Eu deixava a estação toda iluminada. Havia o cafezal, o jardim, então, era um ponto de encontro. A estação vivia de despacho de frutas. Havia grandes carregamentos de frutas e de tomates para os grandes centros urbanos. E o mais era o trabalho de rotina da estação vender passagem, emitir telegrama e cuidar dos trens porque era muito trem. Corria trem dia e noite. No tempo de Tambaú, do padre Donizete, aos sábados chegava a correr seis trens noturno. Era uma loucura. Ali na estação, eu tinha um contato muito bom com o pessoal da escola e muitas das festividades eram realizadas na estação. A Festa da Bandeira, as professoras se reuniam em torno da estação e havia discurso e homenagem a bandeira. E outros eventos a gente fazia acontecer. Ás vezes, na ocasião das festividades as bandas que vinham participar das festas de Nossa Senhora Aparecida, às vezes, faziam uma retreta na estação. Trabalhava [bastante] porque era muito trem, a gente não tinha tempo. À noite, por exemplo, quando passava o trem você falava, agora eu vou descansar um pouquinho e de repente vinha o trem. O pessoal de Jaguariúna amava Guedes. Aos sábados e domingos à noite eles baixavam tudo na estação pra ver o movimento e arrumar uma namorada. Eu aposentei com 32 anos de ferroviário, só de chefe de estação eu permaneci 16 anos e me aposentei em Jaguariúna como chefe de estação, no ano de 1981. Fui telegrafista, fui chefe de estação, fui escriturário e fui um pouco de tudo.

 
Telegrafista e primeiro emprego 
 
Manoel iniciou a carreira profissional na ferrovia, numa das funções mais difíceis na época, o telégrafo, na estação de Vila Albertina. Essa era a comunicação usada entre as estações para enviar mensagens de felicitações por casamentos, condolências em casos de falecimentos e outras situações. Era um tempo em que não havia as facilidades de comunicação da atualidade. Era uma função que exigia atenção e rapidez, porque se errasse uma palavra precisava começar a escrever a mensagem tudo de novo.


  
    O meu primeiro emprego na ferrovia aconteceu em 1944. Meu pai [Joaquim Rodrigues Seixas] era mestre linha na estação de Monteiros, ramal de Jataí, região de Ribeirão Preto. Era uma estação de mato, de roça e não havia emprego, a não ser de pegar no cabo do guatambu.  (Madeira usada na produção de cabo da enxada, querendo dizer que a única alternativa era pegar no cabo da enxada). E aí, então, ele pediu autorização pro chefe João Costa se ele autorizasse eu praticar o telégrafo, aprender telegrafia. Aí pôs a estação à minha disposição e com muito sacrifício aprendi o telégrafo. Aí eu fui nomeado praticante de telégrafo, na estação de Vila Albertina, então, foi o meu primeiro emprego. Era uma estação que não tinha luz, não tinha água encanada, mas era maravilhosa. A frente passava um riacho, onde se via os peixinhos coloridos, as plantas, as flores crescendo ao redor do rio. Era uma coisa linda e apaixonante, mesmo com a ausência de luz e água encanada eu era uma pessoa feliz. O telégrafo era uma das coisas mais difíceis que existia. [Era fundamental ter] ouvido bom e agilidade nas mãos para fazer uma transmissão boa. Ter agilidade e ouvido bom para não perder a palavra, porque não ficava uma fita para gravar. Aí você tinha que repetir tudo de novo. Tinha aqueles telegramas grandes de falecimento, de aniversário, de casamento, negócio de banco vinha tudo pela estação. Numa estação de Pedregulho casou a filha do delegado era tanto telegrama, só que houve um negócio engraçado, num dos telegramas de felicitações da noiva misturaram um telegrama de falecimento. Ah o delegado ficou louco foi na estação saber quem tinha mandado o telegrama de pêsames. Era muito difícil, uma coisa dificílima. Tinha o abecedário. O telégrafo era um aparelho quadrado que tinha duas campainhas e entre uma campainha e outra havia uma agulha e aquela agulha a ser acionada por um teclado ela girava de um lado e do outro e ia produzindo o som, um som mais agudo e outro grave, e você tinha que discernir aquele som. Era muito difícil e muitos não conseguiram aprender a telegrafia. O som embaralhava tudo e você tinha que discernir no ouvido as palavras.  Escrevi trechos grandes. Vinha trechos de banco com código, vinha telegrama de falecimento, de aniversário e os textos mais diferentes vinham pelo telégrafo. Era muito complicado e se errasse um código de banco estava tudo perdido era prejuízo na certa. O telégrafo era muito rápido. 

 

Assombração
 
Naquele tempo haviam muitas histórias de assombração que cercavam a ferrovia e que foram contadas por Manoel Seixas.



  Aquele tempo haviam os rondas, ferroviários especializados que antes da passagem do trem noturno, o trem fantasma, tinham que sair pra examinar o estado da linha, se não tinha um trilho quebrado, uma árvore caída, mas eles tinham um medo tão grande, mas tão grande, que saia com a sogra, com o sogro e com primos, com os cachorros, armado até os dentes de tanto medo de assombração. O noturno, eles falavam que era o trem fantasma. Eles alegavam que as vezes encontravam um outro trem que vinha vindo e depois desaparecia no túnel. Falava também que quando ia rondar eles encontravam outro ronda que vinha ao seu encontro e quando passava numa santa cruz, esse ronda desaparecia. Eu era chefe na Estação de Jaguariúna e tinha o plantão noturno, o telegrafista e o portador. E naquele tempo corria o trem noturno, esse trem que amedrontava os rondas. Aí quando o trem chegou na estação, o guarda trem desceu na plataforma e falou pro telegrafista de plantão moço eu vou deixar uma carga muito especial na estação pra você. Não se assusta, se trata de um caixão de defunto. Aí passaram a velar o corpo sem saber quem era. Aí vinha vindo um trem de carga e o maquinista batendo aquele papo, bebendo uma caneca de café com leite quando deparou com um caixão de defunto, levou um tamanho susto que deu uma freada, na locomotiva, que o guarda que estava no último vagão deu uma cabeçada no varão do breque e falou uma palavra impublicável.

 
Procissão
 
Também foi responsável por manter por vários anos a tradição ferroviária da Procissão dos Ferroviários, em homenagem a Nossa Senhora de Fátima, por cerca de 30 anos, em Jaguariúna e chegou integrar as festividades de aniversário da cidade.


 
  Geralmente, muitos ferroviários eram portugueses. Eles tinham muita devoção à Nossa Senhora de Fátima [padroeira de Portugal] e muitos traziam encrostada no painel da locomotiva uma pequena imagem de Nossa Senhora, então, baseado nessa devoção eu também quis prestar uma homenagem a Nossa Senhora instituindo a Procissão dos Ferroviários, que de certa forma era nossa padroeira. [A primeira procissão] foi mais ou menos no ano de 1974 saia da Estação de Jaguariúna e vinha pelas ruas da cidade. Mais tarde quando erradicou a estação passou a sair da minha casa e ia lá para a igreja, sendo recepcionada pelo padre [Antonio Joaquim] Gomes. Com o passar do tempo, com a inauguração da ABPF (Associação Brasileira de Preservação Ferroviária] ela passou a ser de trem. No começo vinha até a estação do rio Jaguari e depois com a construção da ponte teve como destino a Estação de Jaguariúna, hoje o Centro Cultural [Ulysses da Rocha Cavalcanti]. Era uma procissão majestosa e grande com mais de 10 carros de passageiros e tinha o pessoal do interior de Ribeirão Preto, Casa Branca, Campinas e Uberaba todos participavam dessa grande procissão. Era o encontro dos ferroviários antigos e colegas de trabalho. Era romântico e poético. [Tenho saudade] do romantismo do trem e quando era o maquinista apitador. Ele fazia o espargir no ar, a sublimidade daquele apito, o dobrar do sino quando chegava na estação. Então, a chegada do trem era um romantismo, uma coisa linda e muitas pessoas iam na estação para curtir o trem.
 
 
 
Família Seixas
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